Cultive a leveza

É possível lidar com as dificuldades da vida com mais leveza, suavidade e graça. E, de quebra, reduzir da rotina o rancor, o mau humor ou a dureza.

Era uma quarta-feira à noite. Eu estava na porta do Centro Cultural Banco do Brasil, de Belo Horizonte, aguardando um táxi para me levar ao encontro de uma amiga. Nessa espera, uma chuva de verão, dessas que caem de forma intensa, resolveu me fazer companhia.

Em poucos segundos, tudo começou a me irritar: a forma da chuva cair na diagonal molhando minha roupa e meus sapatos, as pessoas que se espremiam para também se proteger dos pingos e dos raios, a demora do motorista que precisou tomar um caminho mais longo por causa do congestionamento. O que seria uma espera pequena se tornou um tormento, ao menos ali, dentro da minha cabeça.

Entre o meu emaranhado de reclamações mentais, uma senhora de uns 70 anos parou ao meu lado e pediu ajuda para se abrigar. “Eu sou muito mais jovem que minhas netas. Ah lá: só sabe reclamar ao invés de agradecer”, disse sorrindo ao apontar uma moça que seguia caminhando pela calçada à nossa frente. Naquele momento, senti meu rosto corar e os músculos do meu corpo relaxaram. E eu só conseguia pensar que, certamente, aquela senhora era também mais jovem que eu.

Às vezes, colocamos tanto peso nas coisas corriqueiras que, sem perceber, vamos nos tornando pessoas rabugentas, que já parecem ter vivido uma existência inteira entre lamúrias e dias de tempestade. Maldizemos o sol, a chuva, as estações do ano, as palavras ditas na voz do outro, e criamos uma sucessão de inimigos imaginários, que rapidamente levam embora a nossa paz e principalmente a nossa leveza.

A vida com leveza depende de nós

Nesse caso, ter uma vida mais leve ou mais pesada nem tem realmente a ver com a idade ou com os quilos do nosso corpo na balança, mas com a forma com que escolhemos ver e encarar os acontecimentos em nosso dia a dia.

“A leveza com que as pessoas se preocupam hoje é a do corpo, estamos vivendo uma obsessão pela magreza. A gente não pode prestar atenção só nesse peso porque, enquanto isso, a alma engorda assustadoramente”, pontuou Leila Ferreira, jornalista, palestrante e autora do livro A Arte de Ser Leve. “Você vê pessoas com corpos esbeltos, malhados, e com almas pesando 150 quilos. Eu brinco que o grande risco que a gente vive hoje é de ver uma população com obesidade mórbida de espírito.”

E nem precisamos procurar muito para percebermos que Leila tem toda razão. No trabalho, no mercado, dentro do ônibus e até na própria casa: basta olhar com um pouco mais de atenção para identificarmos como andamos meio pesados e pouco gentis, cada vez mais estressados, intolerantes, raivosos e indelicados, presos em nossas buscas externas, nos esquecendo daquilo que trazemos por dentro.

Como me disse Leila, hoje em dia, tudo em nosso mundo nos incentiva um pouco a abrir mão de nossa leveza e a carregar esse excesso de coisas negativas dentro de nós. “É um mundo que nos estimula a correr, a nos endividar, a consumir de forma exagerada, a querer sempre mais”, afirmou a escritora. E, nessa mania incessante de buscar sempre mais e mais, terminamos nos esquecendo de viver o momento presente e de apreciar o ciclo natural de todas as coisas, carregando mais peso do que aquele que realmente nos cabe.

Um passo por vez

Mas é claro que conquistar novos objetivos também é importante para que a roda da vida continue a girar. No entanto, a leveza vai embora justamente quando essa necessidade do todo se torna uma obsessão, e as simplicidades perdem um pouco o sentido diante de nossos desejos tão grandiosos. “Quando falei que ia escrever sobre esse tema, muita gente repetiu: ‘nossa, mas o mundo com esse peso todo, como você vai escrever sobre leveza?’ E é justamente por isso: já existe tanto peso fora de nós, que a gente não precisa levar para o nosso interno”, explicou Leila.

Em seu livro, ela traz histórias reais de pessoas como eu e você, que dentro de suas simplicidades e limitações dominam com maestria e sem esforço essa arte de ser leve. São pessoas que sorriem mais diante da vida, que constroem suas histórias dentro de suas realidades particulares e que nos levam a refletir, afinal, sobre como estamos erguendo as paredes dos nossos dias e conduzindo a própria vida. “Conversei com uma cabeleireira e perguntei a ela como conseguia ser tão leve. E ela me disse: ‘tem gente que vem ao mundo de caminhão, tem gente que vem de bicicleta. Eu sou da turma da bicicleta’”, lembrou.

Caminhões, bicicletas…

Dependendo do tamanho, um caminhão pode carregar toneladas de carga. Agora, imagine passar a vida toda trafegando pelas estradas, cheios de tanto peso desnecessário? Uma hora, nosso caminhão corre sério risco de ter uma pane e paralisar, necessitando de manutenções urgentes. “Eu nunca vou conseguir passar pelo mundo de bicicleta, minha leveza nunca vai chegar a esse ponto. Mas o caminhão eu aposentei. Precisamos aprender a escolher cuidadosamente o nosso veículo”, alertou Leila.

Essa maneira como transitamos pela vida é responsabilidade nossa. Podemos seguir por aí carregando nossas angústias, nossos medos, dores e insatisfações, ou podemos diminuir um pouco essa bagagem. Mas, também, devemos prestar cada vez mais atenção em nossas ações, substituindo tanto peso por doses generosas de bom humor, gentileza e paciência com as imperfeições. Não é tão difícil assim. Reconhecer quando nossa alma pesa e propor a ela pequenas mudanças já é um passo e tanto para compreendermos a necessidade de esvaziar o bagageiro. E, mais tarde, até substituir o nosso veículo por um novo que ocupe cada vez menos espaço.

Pequenas pausas

É importante que a gente saiba também que, para quem não veio ao mundo de bicicleta, não é de uma hora para outra que essa leveza vai chegar. Tudo tem o seu tempo, não é mesmo? Leila me disse que, quando percebemos que esse “ser leve” nos falta, precisamos encontrar, entre nossos pensamentos e reflexões, a nossa própria maneira de reaprendê-lo. “Nós não paramos mais.

Estamos eliminando as pausas da nossa vida. Esse parar para pensar não existe mais”, comentou. E, se não fazemos isso, se não paramos para desacelerar um pouco, continuando pelo caminho com cargas excessivas de preocupações, dificilmente encontraremos uma forma de sermos mais leves. “Quando a gente elimina as pausas é complicado termos a consciência do que está nos angustiando, do que podemos fazer para diminuir o peso.”

Pause e retome

Por isso, bater mais uma vez naquela tecla do autoconhecimento é essencial para moldarmos nossa maneira de seguir em frente. Apenas quando compreendemos o que se passa dentro de nós e acolhemos nossas angústias, medos e até aquilo que nos deixa alegres, conseguimos ter a chance de cortar as raízes do que nos faz mal e que não harmoniza com dias de mais paz e menos peso. “Acho que uma das coisas mais essenciais hoje é a pausa. E com isso a retomada da reflexão, saindo um pouco do piloto automático”, me disse Leila.

E não precisamos parar por um tempo tão longo. Muitas vezes, alguns minutos com os pensamentos soltos, sem preocupações ou censuras, já são suficientes para iniciarmos o processo de “emagrecimento da alma”. Pois, a partir desse tempo que tiramos para nossas reflexões e para olhar nossos desejos e anseios com o coração aberto, encontramos a própria leveza que, no fundo, não carrega mistério algum: ela é tudo aquilo que torna mais simples o nosso caminho e nos liberta principalmente do mau humor e das insatisfações cotidianas.

Deixe-se contagiar

Esse encontro tão particular e intransferível pertence a cada um de nós. A minha leveza é diferente da sua, que não é igual a de seus amigos, nem de seus familiares, e por aí vai. Tenho um amigo, por exemplo, que sempre traz uma grande delicadeza no viver e me transmite uma sensação de ser mais leve quando chega. Mesmo entre a agitação de sua profissão (ele é ator), nunca o vi chateado ou maldizendo a vida.

Por isso é sempre uma alegria encontrá-lo: sua forma de ser e de sorrir contagia quem cruza seu caminho. “Cada um tem seu processo, né? Eu tento não renunciar à subjetividade. E sempre que posso construo narrativas em torno do otimismo. Fazer o que se gosta, ver gente, conversar com as pessoas, respeitar as diferenças, ser diverso e estar em contato com o que é diverso”, me contou Ramon Brant, quando perguntei de onde vem tamanha leveza.

Tire um tempo para você

Aprendi então que, mesmo sendo só nossa essa responsabilidade por uma maneira mais leve de encarar a vida, quando trazemos essa harmonia diante do cotidiano e dos obstáculos do caminho, automaticamente contagiamos quem está à nossa volta. E criamos uma espécie de onda de leveza: transmitimos em raios de distância o bem-estar que trazemos dentro de nós e tornamos mais agradáveis os ambientes à nossa volta, sem fazer qualquer esforço. “Para mim, é importante tirar um tempo para ficar em silêncio. Entender o que há de melhor na solitude, o que de melhor há em você para, depois, emanar para o mundo”, completou Ramon.

E, dessa mesma forma que ele encontrou a sua leveza dentro daquilo em que vive e acredita todos os dias, a jornalista Natália Dornellas também fez suas buscas para conduzir o caminho de uma maneira mais sábia e gentil. Há cerca de dois anos, ela passou por um episódio que poderia ter lhe arrancado toda a chance de viver de uma forma mais delicada. Foi a descoberta da doença de seu pai e todas as mudanças que se desenharam em suas vidas desde então. Senhor Adelair Toledo foi diagnosticado com degeneração corticobasal, uma doença rara que paralisa aos poucos os movimentos do corpo, dificultando a vivência de uma rotina comum.

Bom humor gera leveza

Diante de todos os impasses e dos desafios que surgiram, a maneira que pai e filha encontraram para tornar tudo mais leve foi o bom humor. “Somos assim desde sempre. Minha mãe teve esclerose lateral amiotrófica e minha avó também. Convivemos com perdas, e aprendendo a lidar com a dor de uma forma bem-humorada. Isso nos permitiu continuar pelo caminho sem maldizer a vida e suas surpresas”, contou Natália. Um pouco de suas vivências ao lado de Adelair, ela compartilha em um perfil no Instagram. É uma forma de tocar o outro e chamar um pouco a atenção para essas fragilidades e como elas não devem nos derrubar com tanto peso. “É importante que outras pessoas também vejam como dá para passar por tantas dificuldades, de um jeito leve.”

Falando assim, até parece fácil. Mas, se colocamos isso dentro dos nossos pensamentos, essa ideia de que dá para seguir encontrando alternativas para as dores e adversidades do dia a dia, não resolveremos todos os nossos problemas, é verdade. No entanto, daremos a nós mesmos a chance de lançar um olhar mais doce para a rotina e perceber que é uma questão de escolha seguir de um jeito menos duro e rude, principalmente com a gente mesmo.

Qual a sua leveza?

É claro que, como quase tudo em nossa estrada, não há um manual de instruções pronto e preciso para que possamos encontrar o nosso jeito de “ser leve”. Mas é necessário entender que, dentro de nossas limitações e das condições de vida, podemos encontrar algumas brechas que vão favorecer a nossa trajetória dentro dessa busca por um caminho que pese menos. “O Mário Sérgio Cortella diz que a leveza pede uma vida mais simples. E uma vida mais simples não é uma vida boba, simplória ou superficial. Mas é algo com menos desgaste, que nos desvitalize menos”, disse Leila.

E podemos ter essa vida, podemos reduzir esse peso interior, em qualquer lugar em que se esteja. Talvez diminuir a carga de trabalho, consumir cada vez menos, criar pequenas pausas em nossos afazeres, ter momentos de lazer, sejam coisas que até parecem pequenas, mas que no fim, na soma de tudo, contam muito na balança de nossas emoções.

“Acho que, dentro das nossas limitações, conseguimos fazer essas mudanças internas que favorecem a leveza”, concluiu Leila. Só quando identificamos e colocamos em prática essas pequenas mudanças que podemos realizar a curto e a longo prazo. Dessa forma, estamos efetivamente diminuindo o excesso de peso nas relações e no dia a dia. E podemos, enfim, respirar melhor. Afinal de contas, não desejamos de forma alguma continuar transitando por aí com um caminhão transbordando angústias, não é mesmo?

Nesse trânsito da vida, eu já escolhi o meu novo veículo. E você, já sabe qual é o seu?

Fonte: Vida Simples