A literatura como remédio

Para o historiador Dante Gallian, a prevenção para os males do corpo e o padecimento da alma está na leitura dos grandes clássicos. Ele pesquisa o poder disso há quase duas décadas.

Foi o avô, um ex-combatente da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), quem aflorou a paixão pelos livros no menino Dante. “Meu avô não terminou o curso primário, mas era um grande autodidata e um apaixonado pelos livros. A única coisa que ele conseguiu trazer da Espanha para o Brasil foi sua pequena biblioteca, com autores como Pablo Neruda, Antonio Machado, Cervantes e alguns poetas espanhóis”, conta Dante, que aos 13 anos – e por insistência do avô – leu Dom Quixote de La Mancha, um clássico escrito, no início do século 17, por Miguel de Cervantes.

Foi a primeira de muitas outras obras, consideradas clássicos da literatura mundial, que lhe foram apresentadas e que moldaram seus gostos e também seu destino. Dante se formou em história e foi trabalhar com educação, e acumulou um acervo de cerca de 3 mil exemplares – ele garante já ter lido mais de mil.

Como professor universitário, recebeu o convite para dar aulas de história da medicina numa grande faculdade de São Paulo, onde incorporou ao dia a dia dos alunos a leitura de livros como Admirável Mundo Novo e Frankenstein. A bibliografia se transforma em material rico para ensinar, por exemplo, bioética aos futuros médicos. Foi desse jeito, colocando a literatura na rotina das pessoas, que o projeto cresceu – existe há quase 20 anos – e se transformou, entre outras coisas, em um laboratório de leitura. Essa experiência fez brotar no professor o interesse em entender o que nos livros era capaz de modificar a vida. Foi sobre isso que conversamos.

Como um historiador foi parar na faculdade de medicina?

Há mais de 16 anos recebi o convite para montar o Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde na Escola Paulista de Medicina (atual Unifesp), onde posteriormente fui dar aula de história da medicina. Só que os alunos não entendiam por que aprender história numa faculdade de medicina e chamavam minha aula de “sonoterapia”. Fiquei pensando sobre como chegar naquelas pessoas. E, então, tive a ideia de xerocar pequenos textos, clássicos da história da medicina como Hipócrates, para aproximar mais a história da vida deles.

Era uma disciplina eletiva e poucos a escolhiam. Então eu colocava 20 alunos sentados em roda e perguntava o que eles achavam da leitura, que sentimento aquele texto provocava neles. E passávamos por cinco minutos de silêncio sepulcral. Porque os alunos, de maneira geral e independentemente do curso, não estão acostumados a serem perguntados sobre o que acham ou sentem. Quando são incitados a participar, ficam muito intimidados porque, afinal, nunca alguém lhes perguntou isso. Mas, por mais que estejamos passando por um processo forte de desumanização, quando você dá espaço para que o outro manifeste seus sentimentos, esse sentir vem com força. E as pessoas passaram a se surpreender com as opiniões que tinham. Quando terminou esse primeiro ano de curso, um grupo pequeno pediu para se reunir comigo, num horário extracurricular, para seguir com a leitura.

O que você aprendeu nessas aulas?

Percebi que as pessoas se surpreendiam com o fato de terem uma opinião. E, aos poucos, iam perdendo o medo de se expor e se interessavam em falar. Costumo dizer que esse é o momento de descoberta em que as pessoas percebem que gostam de ouvir sua própria voz. Porque, no início, ouvir a própria voz numa sala de aula é quase um sacrilégio. É algo que o professor já corta na hora.

Mas depois esses encontros se transformaram em algo maior…

Sim. Passei a me reunir com esse pequeno grupo na hora do almoço e ele foi crescendo, aos poucos, pelo boca a boca, e se expandiu para alunos de outros cursos como biomedicina e enfermagem. No início, seguimos analisando os textos ligados à própria medicina, mas depois abrimos para artigos de jornal e ensaios filosóficos. Até que, um dia, um aluno sugeriu que discutíssemos uma tragédia grega: Antígona, de Sófocles. E a leitura dessa tragédia teve um impacto muito forte. As pessoas leram o texto e se emocionaram e começaram a ligar aquilo com a vida deles.

Lembro de uma moça que estudava enfermagem e comentou como o enredo de Antígona era a história dela. Ela, então, começou a contar um problema que teve no ambulatório, em relação a um paciente que havia morrido. A partir disso, eu me dei conta que através dessas leituras eu poderia discutir temas éticos. Indo além: isso deveria sempre fazer parte da formação não só dos profissionais de saúde mas de todos nós. Essa experiência me ajudou a desenvolver uma linha de pesquisa sobre humanização e estética, que deu origem ao Laboratório de Humanidades, que funciona dentro da Unifesp. Hoje, ele é um espaço não apenas para alunos de graduação como também para aqueles da pós-graduação e funcionários. Tenho grupos com um médico aposentado de 70 anos e um menino de 18 que acabou de entrar na faculdade.

Dá para dizer que a leitura fez diferença na vida dessas pessoas?

Sim. Alguns anos depois da formação desse primeiro grupo, entrevistei alguns dos participantes para descobrir o que estavam fazendo e de que forma aquela experiência impactou a formação profissional e de vida deles. E todos responderam que aquelas reuniões foram fundamentais, porque despertaram neles o interesse pela leitura. Os cursos da área de saúde são muito focados nos aspectos físicos e biológicos, e o fator humano costuma ficar mais relegado. Todos disseram que a leitura deu a eles um diferencial. Primeiro, porque se tornaram leitores, e não eram. Além disso, se tornaram bons ouvintes, o que é incrível.

Todo livro é passível de ser lido?

Um livro não é um clássico à toa. Autores como Homero, Cervantes, Machado de Assis não continuam sendo lidos, relidos e reeditados séculos depois porque têm uma boa assessoria de marketing. São obras que conseguem traduzir de maneira única o que está na alma das pessoas. Isso é um clássico. E o fator tempo é decisivo, porque os anos vão passando e a obra vai ficando. Temos autores mais modernos que podem ser considerados clássicos? Existem obras que apresentam marcas de que possivelmente se transformarão, ao longo dos anos, em um clássico. Acabei de ler um livro do escritor Valter Hugo Mãe, O Nosso Reino, que é de tirar o chapéu. É um livro muito perturbador.

Temos autores mais modernos que podem ser considerados clássicos?

Existem obras que apresentam marcas de que possivelmente se transformarão, ao longo dos anos, em um clássico. Acabei de ler um livro do escritor Valter Hugo Mãe, O Nosso Reino, que é de tirar o chapéu. É um livro muito perturbador.

Você já abandonou alguma leitura?

Já. Existem muitos livros que não valem a pena o tempo que você dispensa para a leitura. A opção pelo clássico é o caminho seguro, mesmo que às vezes seja difícil. A leitura guiada, nesses casos, ajuda muito. É isso que faço com meus grupos, vou mostrando o que deve ser observado em cada trecho do livro e como ele pede para ser lido.

Como um livro pede para ser lido?

Uma vez, trabalhei com um grupo a leitura da obra Odisseia, de Homero. Ninguém gostou, a não ser por uma única aluna, que achou maravilhoso. Então ela contou o segredo: leu em voz alta. Num segundo encontro, todos estavam igualmente maravilhados. Isso tem a ver com o tal exercício da escuta, de aprender uns com os outros. Um livro, nesse sentido, tem um potencial extraordinário de nos aproximar. E a leitura em grupo também é benéfica porque deixa de ser solitária e favorece os vínculos e a necessidade de estar junto. Isso é de um poder terapêutico enorme.

Como isso saiu da faculdade de medicina?

Os encontros do laboratório para mim eram um oásis. E passei a ser um leitor voraz. Deu um colorido à minha vida. Eu tinha sempre um livro embaixo do braço e ficava na expectativa do encontro para dividir as minhas descobertas e
percepções. Isso se tornou algo prazeroso e necessário. Aos poucos comecei a perceber que isso era muito mais amplo e que podia sair dos muros da universidade. E comecei a testar fora, em escolas e empresas [Dante dá aulas regulares na Casa do Saber, em São Paulo].

Algumas pessoas, no entanto, passaram a pedir um acompanhamento. E seguimos nos reunindo na casa dos alunos, onde houvesse uma sala ampla disponível. Até que surgiu a Casa Arca, um espaço que funciona numa casa no bairro de Moema (SP), onde há grupos de leitura dos clássicos, abertos ao público [a Casa Arca foi fundada por Dante e a esposa, Beatriz. O lugar tem grupos regulares de estudo dos clássicos, além de outras aulas que envolvem literatura, escrita e artes, como pintura, costura e o cozinhar].

Os livros já o salvaram?

Diversas vezes, o tempo todo. A literatura é um refúgio. O mundo em que vivemos é violento e difícil. E o livro me ajuda a ampliar a perspectiva da realidade. Porque a realidade não se resume a crise econômica e política ou mesmo a violência. A literatura, nesse ponto, é um remédio, porque ela derruba essas paredes. Através de um livro você viaja na história, na geografia e principalmente na alma e descobre coisas maravilhosas. Eu costumo dizer que não tomo nenhum remédio. Meu único remédio é minha leitura diária.

Fonte: Vida Simples