Polêmica: O que fazer quando o coração não para?

Uma discussão acerca da eutanásia, ortotanásia e a relação com o coração

 

 Quem poderia imaginar que uma palavra tão clássica como eutanásia, derivada do grego eu, que significa bom e thanatos que quer dizer morte causaria tantas discussões polêmicas nesse início de século 21? Pois é, grego clássico nenhum certamente, porém nós, bem mais modernos, ainda conseguiremos ver, ouvir e tomar partido em muitas dessas acaloradas discussões. O que significa de fato e de direito, eutanásia? E por que essa polêmica, se provavelmente para todos nós, seres mortais, seria vantajoso ter uma boa morte? A quem caberia o papel de decidir e executar a eutanásia? E ainda, por que tantos componentes como o social, médico, psíquico, cultural, religioso, político, legal, ético, se posicionam contra ou a favor da eutanásia?

Bem, eutanásia assume o significado de morte serena, sem sofrimento, mas também significa a maneira pela qual se busca abreviar, sem dor, a vida de um enfermo reconhecidamente incurável, contrário de distanásia que “é o prolongamento da vida de modo artificial, sem perspectiva de cura ou melhora”.

É exatamente a segunda definição de eutanásia, com o termo abreviar a vida, que gera tanta emotividade, atenção, argumentação e avaliação. A prática da eutanásia não deve ser confundida com homicídio ou mesmo o suicídio assistido, “ela visa à situação em que o interessado quer livremente morrer, mas não consegue realizar seu desejo amadurecido, por motivos físicos, necessitando do auxílio de outros”.

O fato de a eutanásia estar associada à morte cerebral de pessoas cujo coração continua funcionando, divide opiniões. O coração foi considerado por muito tempo como sendo o centro de todo o corpo humano e mesmo depois dessa atribuição ter sido transferida para o cérebro, ainda se conserva a idéia de que se o coração pulsa é porque há vida e há esperança. A partir daí instituições sociais e áreas específicas do conhecimento se esmeram em argumentos contra ou em seu favor.

Alguns dos principais pontos a favor da eutanásia são pautados em dois princípios: o da qualidade de vida e o da autonomia pessoal. Sobre qualidade de vida entende-se “a atribuição de um valor universal, de qualidades históricas e sócio-culturais aceitas pelo titular de uma vida particular, vida que vale a pena ser vivida”. Por autonomia pessoal, entende-se “o respeito à liberdade de escolha da pessoa que padece, podendo esta decidir entre viver ou morrer de acordo com seus valores e interesses”. Nas sociedades liberais, democráticas e contemporâneas, este é considerado o mais importante princípio para a legitimação da eutanásia.

As principais objeções, por sua vez, são encabeçadas pela religião, pelo fato de serem “inspiradas na crença religiosa de uma sacralidade da vida”. Ninguém pode cometer pecado contra a divindade que detém o poder da vida. Outro ponto seria o risco de abusos de procedimentos ou negligência médica. Ainda do ponto de vista médico pesa contra a eutanásia o célebre “juramento de Hipócrates, pelo qual o médico não pode ser o juiz da vida e da morte de alguém”.

Porém, ainda, e tão forte quanto esses, consta o argumento da lei: nos países onde a eutanásia não é permitida legalmente, como no Brasil, ela se enquadra como homicídio e quem a pratica, mesmo por vontade ou a pedido da vítima, é punido criminalmente.

 Se a lei é clara no Brasil, porque o tema continua polêmico? O que há de inovação sobre o assunto que reacende essa polêmica? Uma boa resposta encontra-se no Código de Ética Médica, vigente desde 2010. Nele apresenta-se a ortotanásia como uma proposta de inovação ao tema, principalmente no que tange a relação médico-paciente. A ortotanásia rege que o médico deve oferecer ao paciente terminal e incurável todos os cuidados paliativos disponíveis na medicina evitando ações tecnológicas, medicamentosas e econômicas desproporcionais, inúteis ou obstinadas. Tudo é claro, levando-se em consideração a vontade do paciente ou de seu representante legal quando este se encontrar impossibilitado de expressá-la.

E mais recentemente, o mesmo código de ética reconheceu a validade do testamento vital, documento pessoal e intransferível, que traça antecipadamente as diretrizes referentes ao suporte médico desejado por pacientes, nos momentos finais de quadros terminais. Também e igualmente importante, aquilo que não é desejado por eles.

No testamento vital o paciente grave, incurável que não esteja respondendo mais a nenhuma medida terapêutica, poderá expressar verbalmente ou por escrito a forma como desejará viver seus últimos dias até sua morte chegar. De acordo com o Conselho Federal de Medicina esta resolução tem força de lei entre a classe médica, significando que todos os profissionais deverão respeitá-la.

Essas três propostas, no entanto, não se apresentam com características idênticas, embora o desconhecimento por vezes possa gerar dúvidas na distinção de tais procedimentos aplicados pelos médicos. O que contribui bastante para o aumento das polêmicas. Pois há os que temem que tanto um quanto outro possam culminar numa eutanásia camuflada.

Tanto a ortotanásia quanto o testamento vital se diferenciam da eutanásia por aspectos bem específicos. Enquanto na eutanásia o profissional médico utiliza meios para abreviar a vida do paciente; na ortotanásia ele se utiliza de meios paliativos disponíveis para o acompanhamento do processo natural de morte do paciente; enquanto no testamento vital ele acata a decisão do paciente de como ele será tratado durante esse processo.

Temas relacionados à eutanásia serão sempre complexos e profundos por demais, portanto, de difícil manipulação por todos: os prós, os contra e os que não podem manifestar sua posição por razões éticas profissionais. Mesmo em países mais liberais como a Bélgica, Holanda e Suíça, esses procedimentos são cercados de aparatos legais e éticos que passam por freqüentes modificações sempre que a sociedade assim o exigir. Faz-se necessária cautela, pois estamos lidando com “princípios por vezes antagônicos: o da preservação da vida e o do alívio do sofrimento”.

O envolvimento dos componentes sócio-cultural e histórico é determinante para a atuação de uma importante área do comportamento humano: a psicologia. Por não se encontrar o psicólogo, obrigatoriamente, na linha direta da decisão ou prática da eutanásia, ortotanásia ou do testamento vital que geralmente está em mãos do paciente, seus médicos e sua família, cabe a ele o papel de acompanhar, dar suporte e prestar assistência psicológica aos envolvidos, diante de qualquer decisão que possa ser tomada.

Em casos que pressupõem ou se confirmam tais decisões, haverá sempre a presença de processos psicológicos como comportamento, percepção, emoção, consciência, afetividade, e ligados a esses processos, os juízos de valores e ética. Há que se assegurar a integridade psíquica, principalmente do paciente, esclarecendo que ele não sofre de qualquer distúrbio mental permanente ou temporário, está capacitado para decidir por si e pela sua vida e acima de tudo que possui uma vontade explícita que deverá ser respeitada.

Embora uma decisão desse porte careça do fortalecimento do cultural e do social, ela geralmente ocorre no plano individual e se volta primeiro, para o indivíduo, o paciente. Isso tudo gera angústia, pois o indivíduo é um ser socializado. Como se desapegar de família e sociedade? Como fazê-los aceitar tal decisão? E nos casos em que a família toma a decisão, como lidar com o fato para o resto da vida? E como fica o médico responsável pelo paciente? Como se manterem todos íntegros, diante de tal procedimento? O acompanhamento psicoterápico responsável se fará relevante e necessário com o intuito de minimizar tais angústias.

Estes temas irão sempre nos levar a repensar a nossa finitude, de como evitamos falar sobre eles por não nos considerarmos preparados para a morte, nossa e dos que amamos. E vamos adiando o momento de pensar no assunto. Para algumas pessoas a simples menção ao tema é motivo de desconforto e por vezes de verdadeiro terror. Muito dessa repulsa se deve aos próprios avanços da medicina que aliada à tecnologia permite muitas vezes um adiamento da morte, mesmo que de forma artificial e obstinada. Que a polêmica reacendida sobre a eutanásia, com os olhares voltados para a ortotanásia e para o testamento vital, nos permita, também, repensar os limites da vida sob a ótica do que é natural ou não, suportável ou não, possível ou não e ainda do que é digno ou não.      

Por Glória Ferreira – Psicóloga
Da equipe Cuidarte