“Ela prefere imaginar uma relação com alguém ausente do que criar laços com aqueles que estão presentes.”
As obras cinematográficas, via de regra, nos emocionam, contam histórias baseadas em fatos reais, ou não; e ainda nos fazem refletir sobre diversos temas. É assim com o filme O fantástico Destino de Amelie Poulain, que traz como temática de fundo a personalidade de ‘esquiva’ da sua personagem principal.
A sinopse do filme diz que a ingênua Amélie (Audrey Tautou) deixa o subúrbio, onde morava com a família, e muda-se para o bairro parisiense de Montmartre, onde começa a trabalhar como garçonete. Certo dia encontra uma caixa escondida no banheiro de sua casa e, pensando que pertencesse ao antigo morador, decide procurá-lo e é assim que encontra Dominique (Maurice Bénichou). Ao ver que ele chora de alegria ao reaver o seu objeto, a moça fica impressionada e adquire uma nova visão do mundo. Então, a partir de pequenos gestos, ela passa a ajudar as pessoas que a rodeiam, vendo nisto um novo sentido para sua existência. Contudo, ainda sente falta de um grande amor.
Esta última frase da sinopse é, a meu ver, a principal para definir o ‘x’ da questão psicológica na temática do filme. Na verdade, essa mocinha tem um tipo de personalidade que denominamos de Esquiva. E assim sendo, tem uma desconfiança nas relações, ela não consegue ‘se entregar’/estar toda nelas; possui um medo de perder o que ainda nem tem: o amor, por isso vive a procurar sinais de rejeição para perder antes de ter.
Pessoas com esse estilo de personalidade parecem medrosas e ansiosas. Do ponto de vista gestáltico, podemos compreender a personalidade de esquiva, como àquela na qual uma pessoa tem dificuldade em certo ponto do contato, promovendo a descontinuidade deste. As pessoas com personalidade de esquiva são do tipo introjetoras, têm uma tendência ao humor depressivo; têm necessidade de afeto, mas vacilam entre isto e o medo da rejeição e o entorpecimento das emoções.
Ouvi de um professor de psicopatologia em uma especialização que estou terminando, que pessoas com esse padrão de personalidade dificilmente aparecem em nosso consultório. Bem, é verdade em parte a afirmação do mestre, mas na prática clínica conclui que mesmo em um padrão de comportamento, como o de Esquiva, há variação de pessoa para pessoa, pois a subjetividade é única. E o bom dessa experiência é que as pessoas com esse tipo de personalidade chegam em busca de ajuda, sim!
Para nos aprofundamos um pouquinho mais sobre o assunto, vamos falar sobre o conceito de personalidade. Numa compilação livre de vários conceitos, podemos entendê-la como um modo estrutural de pensar, sentir e comporta-se. Allport diz que personalidade é a organização dinâmica no indivíduo de sistemas psicofísicos que determinam as suas adaptações singulares ao próprio meio.
Isto quer dizer que temos envolvidos na personalidade componentes da genética, do crescimento e desenvolvimento, relações familiares (hereditariedade e apresentação do mundo), cultura, geografia, época (campo) e classe social (oportunidades).
Já para o DSM IV, “são padrões de perceber, relacionar-se e pensar sobre o ambiente e sobre si mesmo. Os traços de personalidade são aspectos proeminentes da personalidade, exibidos em uma ampla faixa e contextos sociais e pessoais importantes. Apenas quando são inflexíveis, mal adaptativos e causam prejuízo funcional significativo ou sofrimento subjetivo, os traços de personalidade constituem um transtorno de personalidade”.
Qualquer que seja seu estilo de vivenciar o mundo e se você está incomodado (a) com ele, a boa notícia é que pode ser trabalhado na psicoterapia. Como estrutura e sistema, a personalidade tem um padrão, mas ela pode ser flexibilizada e é nisso que a terapia vai ajudar. E sobre a Amelie, ela consegue entregar-se a um grande amor no final do filme, e assim, deduzi que ela flexibilizou seu estilo de personalidade.
Por Adriana Lemos – Jornalista e Psicóloga (gestalt-terapeuta)
*Da equipe Cuidarte